sábado, 27 de outubro de 2012
Cegueira dos discipulos
Podemos perceber que Marcos,
ao escrever seu evangelho, teve a intenção de caracterizar três etapas do
ministério de Jesus. A primeira, até o capítulo 8, versículo 21, envolvendo o
ministério de Jesus na Galileia e nas regiões
gentílicas vizinhas, abrange desde o batismo de João até a passagem por Betsaida; é uma fase de
formação dos discípulos, e a palavra chave é a "casa", mencionada frequentemente como lugar onde a
comunidade se encontra com Jesus. A segunda etapa, do capítulo 8, versículo 22,
ao capítulo 10, versículo 52, que envolve a viagem com destino a Jerusalém, a
partir de Betsaida e dos povoados de Cesareia de Filipe, ao norte
da Galileia; nesta etapa a
palavra-chave é o "caminho", repetida várias vezes, ao longo do qual
Jesus prepara os discípulos para o desfecho de seu ministério em Jerusalém,
destacando-se nesta etapa os três "anúncios da Paixão" (Mc 8,31-32;
9,30-32; 10,32-34). A terceira etapa, a partir do capítulo 11, abrange o
ministério de Jesus em Jerusalém, culminando com a Paixão, morte e
ressurreição.
A leitura de hoje, com a cura do cego de Jericó, fecha a segunda etapa do
ministério de Jesus, cujo início foi demarcado também com a cura de um cego em Betsaida. Com este artifício
literário, incluindo a caminhada para Jerusalém entre duas curas de cegos,
Marcos realça que Jesus está empenhado em abrir os olhos dos próprios
discípulos quanto à natureza de sua missão no mundo.
Nesta caminhada, aproximando-se de Jerusalém, passam por Jericó, situada a
cerca de 25 km daquela cidade de destino. Os discípulos acompanham Jesus, sem
ainda compreender, com clareza, o sentido pleno de sua missão, pois tinham dele
uma visão messiânica triunfalista.
A narrativa da cura é feita em cores vivas, como em uma cena teatral: a
multidão que acompanha Jesus; o cego, mendigo, sentado à beira da estrada; seus
gritos insistentes, indiferente à repreensão de muitos; o chamado de Jesus e o
seu pulo, jogando o manto fora, concluindo com a recuperação da visão.
Pode-se imaginar que os mendigos de Jericó se instalassem à beira do caminho
que, vindo do norte, levava a Jerusalém, contando com a benevolência e a
piedade dos peregrinos, que, em grandes grupos, viajavam para a cidade a fim de
cumprir o preceito de participação na festa da Páscoa judaica, no Templo.
O cego que estava à beira do caminho, de certo modo, é a imagem destes
discípulos em sua incompreensão. Ele "vê", equivocadamente, Jesus
como o "Filho de Davi", messias poderoso e triunfante da tradição
judaica do Primeiro Testamento. Contudo, este homem quer libertar-se de sua
cegueira. Jesus pergunta-lhe: "Que queres que eu te faça?". Esta
pergunta havia sido dirigida, pouco antes a Tiago e João, cuja resposta revela
que, cegamente, aspiravam ao poder. Bartimeu,
simplesmente, quer "ver", e, vendo Jesus Nazareno com clareza, ele o
segue em seu caminho.
Nossa fé consiste em "ver" Jesus presente, hoje, no mundo, humilde e
amoroso, caminhando com seus discípulos na construção de um mundo novo de
justiça e paz.
José Raimundo Oliva
domingo, 21 de outubro de 2012
O mais importante é o que serve
Encontramos em cada
um dos três evangelhos sinóticos (Mt,
Mc, Lc) três "anúncios
da Paixão", nos quais Jesus adverte seus discípulos sobre as provações que
ele pressente que sobrevirão em Jerusalém, para onde se dirigem. Em sequência aos segundo e
terceiro anúncios, os evangelistas Mateus e Marcos narram a aspiração dos
discípulos por usufruírem o poder. Estes evangelistas fazem, assim, um
contraste entre o projeto libertador de Jesus, vulnerável à repressão dos
poderosos, e a incompreensão desses discípulos apegados à mentalidade de
disputa e conquista do poder. O episódio narrado no evangelho de hoje vem em
seguida ao terceiro anúncio da Paixão. Jesus e os discípulos estão se dirigindo
a Jerusalém e o ministério de Jesus se aproxima do fim. Depois de cerca de três
anos de convívio (outono de 27 à primavera de 30), os discípulos ainda
manifestam incompreensão em relação à novidade de Jesus. É João, um dos
discípulos mais próximos de Jesus, e seu irmão, Tiago, que manifestam suas aspirações
em estarem à direita e à esquerda de Jesus, imaginando que ele assumiria o
poder (a "glória") em Jerusalém. Porém, quando Jesus é suspenso na
cruz, são dois marginalizados que estão à sua direita e à sua esquerda, em duas
cruzes.
Diante das pretensiosas e equivocadas reivindicações dos discípulos e das
contendas entre eles, Jesus faz uma crítica do exercício do poder neste mundo.
Rejeitando, de maneira generalizada, o abuso de poder dos chefes das nações e
de seus grandes, Jesus reafirma a novidade do Reino. Enquanto a sociedade é
dividida entre poderosos opressores e oprimidos explorados, Jesus propõe a
conquista da unidade a partir da humildade e do serviço, resgatando-se a vida
dos mais excluídos e marginalizados.
Na visão judaico-deuteronômica, é pelo castigo e
sacrifício que se purificam os pecados. O profeta Isaías (Segundo Isaías)
apresenta o povo exilado na Babilônia sob a imagem do "Servo de
Javé", que por seu sofrimento seria justificado e glorificado com o poder,
conforme o "projeto do Senhor" (primeira leitura). Sob esta mesma
visão, o sofrimento final de Jesus foi também assim interpretado. A carta aos
Hebreus (segunda leitura), a partir da imagem dos sacerdotes que ofereciam os
sacrifícios no Templo de Jerusalém, atribui a Jesus ressuscitado o caráter de
"eminente sumo sacerdote que atravessou os céus"; esta eminência está
no fato de que "Cristo se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem
mancha" (Hb 9,14), ao mesmo
tempo como sacerdote e vítima. Louvar a cruz de Jesus como instrumento
meritório de salvação da humanidade é conseqüência da
doutrina sacrifical do Antigo Testamento. Esta compreensão não corresponde à
realidade do Deus de amor, que tudo cria pelo amor e a todos comunica sua vida
divina e eterna pelo amor carinhoso, paterno e materno.
Na encarnação, Deus nos deu seu Filho, Jesus. E o próprio Jesus dedicou sua
vida, convivendo com os discípulos e as multidões, para a libertação e o
resgate da vida de todos, neste mundo. A vida de Jesus é um testemunho do amor
que tudo transforma e gera a vida que permanece para sempre.
José Raimundo Oliva
domingo, 14 de outubro de 2012
Quem é bom?
Aquele que vem
correndo e cai de joelhos diante de Jesus representa o piedoso observante da
Lei, ansioso e temeroso da morte. As suas acentuadas reverências podem ocultar
certo exibicionismo, característico das relações entre pessoas de posses. Assim
também o título com que se dirige a Jesus: "Bom Mestre...", o qual
Jesus rejeita. Em resposta a este homem, Jesus lhe recorda os tradicionais
mandamentos da Lei, acrescentando, contudo, um: "não defraudarás
ninguém", que diz respeito à apropriação injusta de bens. O homem, então,
afirma que tudo tem observado. Jesus lhe propõe, então, o passo fundamental que
leva à comunhão de vida com Deus, na eternidade: o despojamento das riquezas e
a partilha com os pobres. O piedoso apegado às riquezas, entristecido, rejeita
o caminho da vida eterna. É um homem sem sabedoria (primeira leitura). Mesmo
que pessoalmente possa não ser injusto, esse homem, ao manter sua riqueza, ela
própria fruto da injustiça, está conivente com a injustiça da sociedade, com
seu sistema e suas estruturas econômicas opressoras e exploradoras.
Superar o obstáculo das riquezas é impossível para os homens submissos à ganância, porém para Deus tudo é possível. A palavra de Deus é mais penetrante do que uma espada de dois gumes (segunda leitura), é capaz de extirpar a ambição das riquezas, gerando o amor ao próximo.
Em contraste àquele homem, o evangelista Marcos apresenta o testemunho de Pedro que afirma sua fé e sua adesão ao seguimento de Jesus, declarando seu desapego de tudo. Nos evangelhos, comumente, Pedro fala representando a comunidade de discípulos.
A opção de Pedro é pelo abandono do apego ao bem privado e o gozo do bem partilhado, comunitário. É o caminho do seguimento de Jesus na construção do mundo novo de justiça e paz. Evidencia-se a proposta da rejeição desta estrutura social, dividida entre privilegiados, opressores e ricos, e excluídos, oprimidos e explorados. É um projeto que contraria a acumulação capitalista privada resultante da exploração do trabalho dos pequenos empobrecidos. Este projeto, assumido por causa de Jesus e do evangelho, suscitará a perseguição por parte dos poderosos beneficiários de seu projeto de acumulação financeira em um mercado global. O projeto de Jesus, em andamento, significa a inserção na vida eterna do "mundo futuro". É o mundo novo possível, com a renúncia ao bem privado, na partilha do bem comum, em comunhão com a natureza, com o próximo e com Deus, na Paz e na vida plena.
José Raimundo Oliva
sábado, 6 de outubro de 2012
Um projeto de igualdade
Os fariseus,
procurando motivo para condenar Jesus em questões da Lei, o questionam, agora,
sobre o preceito do Decálogo que permite ao homem despedir a sua mulher (Dt 24,1). A Lei, que
era atribuída a Moisés, com seu caráter patriarcal machista, vinculava os bens
do casamento à posse do marido, relegando a mulher a uma posição de submissão.
Reconhecendo o direito do homem de repudiar sua mulher, não explicitava, contudo,
quais os motivos que justificariam tal repúdio. Entre os rabinos debatiam-se
quais seriam estes motivos. A escola do rabino Hillel,
mais seguida, autorizava o repúdio pela simples insatisfação do homem. A escola
do rabino Shammai limitava o repúdio
apenas nos casos de infidelidade da mulher.
Os fariseus, apegados à Lei, não duvidavam deste direito do homem. Jesus, em
sua resposta, associa a Lei à dureza dos corações daquele povo e recorre ao
projeto criador de Deus: homem e mulher, criados em uma só carne (primeira
leitura), em igualdade de condições. Descartando, assim, o legalismo e o
machismo, Jesus remete o homem e a mulher ao projeto criador de Deus, que é
elevar a humanidade à plenitude do amor.
Na passagem paralela, no evangelho de Mateus (Mt
19,9; 5,32) é mencionado o direito de despedir a mulher no caso de pornéia (no original grego),
de duvidosa interpretação, possivelmente com o sentido de adultério. Neste
texto de Marcos, tanto o marido como a mulher podem dispensar o cônjuge,
contudo, uma nova união é considerada como adultério. Porém, diante da
complexidade da situação, é importante que sejam avaliados com bastante
discernimento os casos de novas uniões.
Algumas pessoas, ao trazerem crianças para serem abençoadas por Jesus, são
repreendidas pelos discípulos. As crianças são o símbolo dos excluídos, e os
discípulos ainda guardam a mentalidade repressiva, o que leva Jesus a
aborrecer-se. Acolher uma criança é assumir a humildade, a pequenez e a
fragilidade diante de Deus.
Na Epístola aos Hebreus (segunda leitura) fica em evidência seu caráter
eminentemente sacrifical, pelo qual, sob dois aspectos, contradiz a imagem de
Jesus, Filho de Deus. Jesus, Deus presente humildemente na história, entre os
humanos, passa a ser coroado de gloria e honra nos céus; e tal glória é a
recompensa do sofrimento, uma vez que Jesus sempre se empenhou em aliviar os
sofrimentos, comunicando vida plena com seu amor carinhoso.
José Raimundo Oliva
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